sábado, 29 de novembro de 2025

A Myriogênesis de Sagitário


CORREÇÕES HISTÓRICAS E LEITURA ESTRUTURAL

Uma revisão necessária sobre o uso dos graus na tradição astrológica antiga

A astrologia antiga funciona como um laboratório cultural: um espaço onde povos, línguas e métodos observaram padrões recorrentes no céu e buscaram decifrar como tais padrões se inscreviam na vida humana.
É uma proto-ciência de ressonância estrutural — não mensura causas físicas, mas reconhece matrizes de padrão entre diferentes campos da natureza.

No estudo dos graus, poucos temas geram tantas distorções atualmente quanto a chamada Myriogênesis. Este texto reúne uma análise cuidada, apoiada em fontes primárias, especialmente a Mathesis de Firmicus Maternus, na tradução de James H. Holden (2011).
O objetivo é devolver precisão histórica, clareza conceitual e coerência estrutural ao debate.


O termo “Myriogênesis”: origem antiga, não invenção moderna

Alguns autores modernos afirmam que Myriogênesis seria rótulo criado por Holden para organizar o capítulo dos graus. Não procede.

Firmicus Maternus menciona explicitamente a Myriogênesis em pelo menos três passagens da Mathesis. Segundo ele, trata-se de um tratado revelado por Mercúrio (Hermes) a Asclepius, dedicado às previsões feitas a partir de minutos e graus individuais do zodíaco.

Firmicus declara:

  • no Livro III, que a vida inteira pode ser deduzida a partir dos minutos ascendentes, referência direta à Myriogênesis;
  • no Livro VII, que explicações adicionais se encontram “na minha Myriogênesis”;
  • no Livro VIII, que aquilo que a Myriogênesis diz sobre minutos, ele aplicará aos graus.

Ou seja: o termo é antigo, helenístico e ligado a tradições herméticas.
Holden não o inventa; apenas o traduz.


Sagitário não recebe tratamento especial na Mathesis

Outra ideia recorrente é a de que Firmicus dedicou a Sagitário um tratamento extraordinariamente minucioso, como se esse signo ocupasse um laboratório simbólico singular.

Isso também não se confirma.

O Livro VIII da Mathesis traz descrições por graus para todos os signos, sempre conectadas ao sistema dos paranatellonta (constelações que ascendiam simultaneamente com determinados graus).
Os 30 graus de Sagitário seguem o mesmo formato que os graus de Áries, Touro, Gêmeos e assim por diante.

Não há privilégio.
Há método — e método uniforme.


Sagitário no Livro VIII: o real conteúdo

O post originalmente analisado apresentou uma “síntese moderna” dos graus, com temas como viagens, expansão, espiritualidade e elevação moral.
Essas associações são legítimas como literatura contemporânea, mas não correspondem ao texto antigo.

A versão de Firmicus é objetiva, direta, frequentemente dura e centrada em:

  • deformações corporais,
  • destinos violentos,
  • funções sociais específicas,
  • consequências da presença de planetas benéficos ou maléficos.

A seguir, apresento uma síntese fiel dos 30 graus conforme a tradução de Holden, preservando a lógica antiga e seu vocabulário preciso.


Os 30 graus de Sagitário segundo Firmicus Maternus

(Mathesis, Livro VIII, cap. XXVII – Resumo didático e fiel ao texto)

Grau 1 – Nobres, justos, piedosos; alcançam honra.
Grau 2 – Perjuros, irreverentes.
Grau 3 – Perda de um olho.
Grau 4 – Guardiões de túmulos.
Grau 5 – Impuros, motivo de escândalo.
Grau 6 – Pernas deformadas; morte violenta.
Grau 7 – Justos; bons juízes.
Grau 8 – Longevidade e fortuna (com Júpiter); bons intérpretes ou escribas.
Grau 9 – Astrólogos inspirados.
Grau 10 – Atletas armados.
Grau 11 – Morte em guerra.
Grau 12 – Atração por perigos e crimes.
Grau 13 – Parricídio; morte violenta.
Grau 14 – Músicos; fraqueza nos olhos.
Grau 15 – Morte em guerra.
Grau 16 – Mecânicos de guerra (com Marte); morte por lança; parto fatal para mulheres (com Marte).
Grau 17 – Atletas; caçadores (Marte); criadores de cavalos (Júpiter).
Grau 18 – Ladrões; morte violenta; sem filhos.
Grau 19 – Atletas bem-sucedidos; sem filhos.
Grau 20 – Corcundas; cativos; comilões; avessos a costumes estrangeiros.
Grau 21 – Apreço excessivo por comida.
Grau 22 – Grandes comandantes (com Júpiter); conquistas; morte em batalha.
Grau 23 – Morte por feras ou no deserto.
Grau 24 – Treinadores de cavalos; glória (com Júpiter); morte violenta (com Marte).
Grau 25 – Alcoolismo (Marte); ruína por escândalo (Vênus); prostituição (Vênus).
Grau 26 – Conduta viciosa; mulheres agressivas ou prostituição.
Grau 27 – Morte no deserto; vida curta (Marte); pestes (Marte).
Grau 28 – Condutores de mulas trabalhadores.
Grau 29 – Aleijados; corcundas; cativos.
Grau 30 – Consumidos por doenças; vida curta; morte por feras; sem filhos (com Marte).

Esse material reflete o tom direto e prognóstico típico da astrologia tardo-helenística.


Como essa estrutura se encaixa no conceito de ressonância estrutural

Na lógica antiga, cada grau funciona como ponto de coerência entre três níveis:

  1. a geometria celeste (grau ascendente),
  2. a constelação que co-ascende (paranatellon),
  3. o padrão observado em gerações anteriores (laboratório cultural).

Não é causalidade física.
É padronização empírico-histórica, filtrada ao longo de séculos — uma proto-ciência de observação e registro simbólico.

Assim como a meteorologia depende do clima e suas variações, a astrologia clássica depende da constância geométrica do céu e das variações humanas do livre-arbítrio.
A diferença é que a meteorologia mede fenômenos energéticos; a astrologia interpreta influências, não energias mensuráveis.


Considerações finais

A Myriogênesis não é invenção moderna.
Firmicus a cita, a explica parcialmente e promete um tratado completo que não chegou até nós.
Do que se preservou, vemos um sistema de precisão extrema, articulado grau a grau — um esforço de coerência simbólica baseado na observação continuada.

Sagitário não ocupa posição especial no texto.
Sua lista segue o mesmo protocolo aplicado aos demais signos.

Para pesquisas sérias, o estudo direto da Mathesis traduzida por Holden é essencial.
A comparação com adaptações contemporâneas exige cuidado, pois muitas atualizações suavizam ou reinterpretam as duras descrições antigas.

A astrologia antiga não é superstição.
É uma matriz de padrões construída ao longo de séculos — uma tentativa humana de ordenar a realidade usando a coerência do céu como referência.
Esse material continua útil como exercício de leitura simbólica, refinamento cognitivo e compreensão histórica.


 



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